2008/12/23

O BIM e os arquitectos portugueses

O post que se segue é invulgar, neste Blog, na sua latitude e dimensão. Baseia-se num artigo nunca publicado encomendado por uma revista de CAD brasileira, pelo que tenta explicar assuntos que, para arquitectos portugueses, são mais que óbvios. Todavia, julguei que poderia ter algum interesse para os meus leitores. Peço desculpa pela sua extensão, mas trata-se de matérias que vivem juntas e que têm que ser devidamente enunciadas e explicadas.

Pretende-se com este "pequeno" post dar uma visão geral dos ateliers de projecto em Portugal, das suas práticas tradicionais, das alterações legislativas que sucederam recentemente e de como o BIM poderá ajudar os arquitectos a sobreviver aos desafios que se levantam.

O B.I.M. NA ARQUITECTURA
Com mais de 25 anos, a metodologia BIM – Building Information Model – Permite construir simulações tridimensionais dos edifícios, em fase de estudo, projecto, obra e gestão do equipamento.
Dos vários Modelos BIM possíveis, o do projectista serve para testar soluções de projecto.
A riqueza inerente deste modelo, que ultrapassa a mera modelação tridimensional para efeitos de visualização, contém informação fundamental que irá auxiliar o projectista nas decisões projectuais.
Assim, este modelo permite, conforme vai sendo desenvolvido, aferir custos, comportamentos ambientais – térmicos, acústicos, lumínicos, fluxos de pessoas, etc.
Esta testagem da solução implica que o modelo seja dinâmico, que seja fácil de alterar em função dos dados recolhidos a cada momento.
Por isso, o modelo virtual do edifício desenvolvido pelo projectista deverá estar integrado no processo de fabrico do seu projecto, ou seja, deverá estar presente desde os primeiros “traços”.
Os arquitectos, por inerência da profissão, partem para um projecto com uma folha em branco. Não existe nenhum projecto prévio sobre o qual irão desenvolver o seu, ao contrário de, por exemplo, os projectos de redes eléctricas de um edifício.
Como tal, o modelo virtual desenvolvido pelo arquitecto irá tornar-se a base de todos os projectos subsequentes.
Por outro lado, a actividade projectual dos arquitectos baseia-se numa sequência de soluções e prova, em que cada nova ideia é aperfeiçoada por intermédio de testes.
Cada opção de projecto, quer seja espacial, estrutural, de materialidade ou outras, é submetida a vários testes de comportamento e verificação da sua validade.
Por exemplo, caso o arquitecto preveja uma janela numa dada fachada para um dado compartimento, verifica se essa janela tem coerência com o compartimento, com a fachada, quais as consequências a nível lumínico, acústico, térmico, de custos de obra e manutenção, só para mencionar algumas.
Esta verificação é feita para todos os elementos e espaços de um projecto.
Não será disparate afirmar que o arquitecto desenvolve, há centenas de anos, um modelo BIM – mais ou menos informado - para cada projecto.
A diferença é que esse modelo, essa base de dados, foi agora transferido do cérebro do arquitecto para o disco rígido do computador.
Com as vantagens facilmente reconhecíveis: fiabilidade, rapidez, capacidade de armazenamento e recuperação de informação, e, acima de tudo, acesso independente por parte de outros intervenientes no processo.
Claro que não há só vantagens.
O recurso ao modelo virtual como forma de projectar implica uma mudança de atitude por parte dos projectistas.
Por inerência das exigências desse modelo, a arte de projectar altera-se. Esta mudança, embora inevitável, questiona velhas práticas e mitos associados ao acto criativo.

A ARQUITECTURA EM PORTUGAL
Para entender a produção arquitectónica em Portugal, é preciso analisar o seu enquadramento legislativo e o crescimento do número de arquitectos.
Constata-se que o número de arquitectos inscritos na Ordem cresceu 50 vezes em 20 anos.
Em 1988, ano da minha inscrição, éramos cerca de 300, hoje somos mais de 16.000.
Os cursos de arquitectura são dos mais requesitados a nível nacional, logo após os de medicina.
Dos 3 cursos superiores em 1988, hoje existem perto de 30.
No entanto, este crescimento exponencial do número de arquitectos não foi acompanhado por igual crescimento de obras feitas por eles.
A maioria das obras em Portugal continuam a ser projectadas por não arquitectos.
Sem querer entrar em grande pormenor, importa referir que o enquadramento legislativo nacional que designa as competencias dos projectistas de arquitectura remonta a 1973 (faz este ano 35 anos).
É fácil entender que uma Lei de 1973, de um país com pouca construção urbana e pouquíssimos arquitectos, difícilmente se adequa à realidade actual.
No entanto, continua a vigorar.
E como tal, condiciona fortemente toda a actividade dos arquitectos, uma vez que não reconhece as suas competencias como específicas e adequadas para o exercício do projecto de arquitectura, mas antes coloca-os ao nível de outros técnicos como sejam os “engenheiros civis, agentes técnicos de engenharia civil e de minas, construtores civis diplomados”.
Também a responsabilização dos técnicos, tanto ao nível da encomenda pública como da obra privada, é quase inexistente.
É frequente que uma obra pública tenha derrapagens orçamentais acima dos 25%, e nunca os projectistas são responsabilizados por erros e omissões do projecto.
Também no licenciamento, e embore os técnicos subscrevam uma declaração a atestar da legalidade absoluta da proposta de projecto, quando esta não se verifica nunca são aplicadas as sanções previstas na Lei.
Doutro modo não poderia ser, uma vez que a própria Lei admite que sejam autores desses projectos técnicos sem qualquer qualificação arquitectónica.
Por outro lado, a própria dimensão reduzida do País e a sua situação económica débil (em comparação com a maioria dos paises Europeus) significa que não existem muitos projectos, certamente não existem muitos grandes projectos. Os poucos que existem tendem a concentrar-se nas grandes cidades do litoral, como seja Lisboa e Porto, e respectivas zonas de influência.
É pois nesses centros urbanos que se localizam a esmagadora maioria dos gabinetes de arquitectura.
Esses gabinetes são geralmente de reduzidas dimensões, com 3 ou 4 arquitectos, havendo algumas (poucas) dezenas de ateliers com 20 ou 30 arquitectos.
Possuem uma carteira de projectos bastante variada, ou seja, não é habitual especializarem-se num tipo específico de projectos, mas antes diversificarem em função do mercado.
O modelo e dimensão dos ateliers pressupõe que as várias especialidades sejam executadas por colaboradores externos. Não exitem práticamente gabinetes de projecto que congreguem todas as especialidade debaixo do mesmo tecto.
Existe uma minoria de ateliers que se movem dentro do Star Sistem, com apoio da própria Ordem dos Arquitectos e grande divulgação por meio de revistas.
Os restantes gabinetes de arquitectura lutam por sobreviver, num mercado desiquilibrado onde a encomenda escasseia e a concorrência não qualificada obriga a uma baixa sistemática dos honorários.
Neste cenário, o projecto de execução fica muito desvalorizado, previlegiando-se o simples estudo à escala 1:100.

O USO DA FERRAMENTA INFORMÁTICA EM PORTUGAL
A passagem do projecto analógico para o digital em Portugal foi, à primeira vista, tranquilo. Em poucos anos o AutoCad implantou-se em todos os gabinetes de projecto, e hoje em dia não se encontra nenhum que ainda projecte a canetas.
Mas esta fácil adopção nãos significa que os arquitectos Portugueses tenham abraçado o projecto digital. Antes pelo contrário.
Em primeiro lugar, e como já foi dito, porque a maioria dos projectos não são feitos por arquitectos, mas sim por engenheiros, engenheiros técnicos ou mesmo desenhadores.
Por outro, porque a passagem do analógico para o digital processou-se apenas ao nível dos desenhos finais.
Os arquitectos continuam a projectar a régua e lápis, e a ferramenta informática apenas entra numa fase de desenho, geralmente executado por desenhadores ou, mais recentemente, estagiários de arquitectura.
Assim, e embora pareça que a profissão esteja rendida às tecnologias de informação, a maioria dos arquitectos continua a encarar os computadores como meras pranchetas de desenho, chegando mesmo a considerar o seu uso como um “mal necessário”, e não como uma mais valia no processo de projecto.
Um bom indicador desta relação turbulenta entre os arquitectos e as T.I. é o que se passa ao nível do currículo dos cursos de arquitectura.
Embora sabendo que as alunos irão inevitávelmente trabalhar com computadores, todo o ensino de projecto gira em redor da manualidade, do esquiço, da maquete (física), do desenho a lápis. As cadeiras dedicadas ao uso da informática são menores, com poucos créditos. São geralmente leccionadas em gettos denominados de “laboratórios de informática”, embore a maioria dos alunos já possua portáteis.
Assim, a mensagem é nítidamente que se trata de uma disciplina secundária, sem grande relevância para a arte de projectar, apenas servindo para dotar os alunos de algumas competências manuais ao nível da produção de peças desenhadas.
Se esta postura podería fazer algum sentido há 15 anos, quando a maioria dos programas informáticos de CAD apenas eram pranchetas digitais, hoje em dia, com a proliferação e crescimento do BIM, existe um enorme desfazamento entre o que são as necessidades formativas dos alunos e a capacidade de leccionação dos cursos.
A isto não é alheio o facto da maioria dos professores, assim como a maioria dos arquitectos seniores dos ateliers, terem tido uma formação pré-digital, fortemente apoiada nas Belas Artes. As questões tecnológicas são vistas por estas gerações como sendo de menor importância face à dimensão humanística e artística do arquitecto.
Totalmente desfazados da realidade actual, portanto.

O BIM NOS GABINETES DE ARQUITECTURA
Tem havido muito poucos gabinetes de arquitectura em Portugal a adoptar a metodologia BIM.
Alguns pequeníssimos ateliers, de 2 ou 3 arquitectos, são early adopters neste campo.
Mercê de uma grande dificuldade em entrar no mercado, procuram métodos de fabrico de projectos mais rentáveis e precisos. O BIM fornece-lhes ferramentas informáticas e metodológicas que lhes permite realizar projectos mais exactos, com menos erros, a menores custos.
Para os restantes gabinetes, mantêm-se os velhos hábitos de projecto, tendo o CAD apenas substituído as canetas. Nãos se vê necessidade em mudar, porque:
1- A mão de obra é barata. Com a explosão de cursos de arquitectura, e a obrigatoriedade por parte dos alunos de estagiarem durante um ano em ateliers, criou-se um abastecimento de mais de 1000 licenciados em arquitectura por ano. Esses estagiários são mal pagos, chegando mesmo a trabalhar sem serem remunerados. Como tal, não compensa para os ateliers mudarem o seu processo de fabrico para uma metodologia BIM. A própria rotatividade anual dos estagiários não convida a investimentos ao nível da formação, uma vez que os alunos saem das universidades sem saberem projectar apoiados nos computadores de um modo integrado, mas apenas a fazerem desenhos 2D e alguma modelação para renderings.
2- A idade dos decisores. Como já foi dito, a maioria dos administradores desses gabinetes são arquitectos que tiveram a sua formação numa época pré-digital. Como tal, não entendem as verdadeiras potencialidades das ferramentas informáticas, vendo-as apenas como um complemento ao desenho. Para eles, BIM é apenas uma palavra.
3- Um mercado pouco exigente. Sem verdadeira responsabilização dos projectistas quanto a erros, omissões e incumprimentos legais, não existe um incentivo para que os ateliers adoptem metodologias de projecto que os minimizem. Sem exigência de qualidade da construção não é reconhecida pertinência a metodologias vocacionadas para um projecto rigoroso de comunicação à obra.
4- Falta de promenorização dos projectos. Face à realidade do mercado da encomenda, especialmente no grande mercado da habitação uni e multi-familiar, os projectos geralmente não chegam à fase de pormenorização. Neste cenário, o uso de ferramentas BIM pode não ter o retorno esperado.
5- Grandes margens de lucro. A falta de responsabilização origina uma atitude que conduz a uma menor qualidade dos projectos. Como ninguém é obrigado a assumir a responsabilidade de um projecto mal feito, os clientes não estão dispostos a pagar muito por eles. O próprio Estado dá o exemplo, ao adjudicar os projectos aos concorrentes que apresentam o menor preço a concurso. Assim, e embora os preços dos projectos sejam baixos, o facto de o sistema incentivar à má execução origina margens de lucro confortáveis. Neste clima, não compensa investir em tecnologia que aprefeiçoe o rigor dos projectos.
6- A formação académica dos arquitectos continua a ter uma fortíssima componente artística. Os computadores continuam a ser vistos pela classe como uma ferramenta secundária, a aplicar para a produção mais rápida de desenhos finais e renderings, e não como uma metodologia integrada de projecto. As cadeiras dedicadas ao CAD são as que menos créditos dão para a nota final, e geralmente não abrangem mais que 2 ou 3 dos 10 semestres.

NOVO ENQUADRAMENTO LEGISLATIVO
Vários diplomas recentes vieram modificar o panorama legislativo. Estes diplomas entraram em vigor há menos de um ano, pelo que ainda se desconhece as reais consequências da sua implementação.

Regime Jurídico da Urbanização e Edificação:
Introduz o conceito de coordenador de projecto, que é responsável pela compatibilização entre os vários projectos. Esse coordenador declara, por escrito, que os projectos são compatíveis entre sí. Este papel cabe habitualmente ao arquitecto, quando ele faz parte de uma equipa.
Cria a possibilidade da tramitação informática dos projectos. O processo passa a ser integralmente digital, incluindo os projectos. Esta modalidade começou recentemente a ser aplicada na Câmara de Lisboa, estando previsto o alargamento para os restantes Municípios do Pais.
Os procedimentos de licenciamento são “simplificados”. A análise dos projectos (arquitectura e especialidades) é feita apenas no início da obra, com o construtor já contratado. Assim, se houver incumprimento de algum dos (muitos) diplomas legislativos que regem a construção, o arquitecto terá que assumir a responsabilidade dos atrasos e custos perante o cliente.

Regulamento dos Sistemas Energéticos de Climatização em Edifícios (RSECE):
Legislação muito precisa sobre o comportamento térmico dos edifícios, que tem implicações directas na arquitectura, ao nível dos materiais, formas, vãos e espaços. Obriga a uma verificação cuidadosa do comportamento térmico do edifício desde uma fase inicial de concepção.

Novo Código de Contratos Públicos:
A tramitação dos concursos de obra passa a ser baseada em portais de internet. Os projectos passam a ser entregues em formato digital.
Os técnicos passam a ser responsabilizados solidáriamente pelos erros e omissões dos seus projectos. Os arquitectos, como coordenadores gerais de todos os projectos, poderão ser chamados a pagar até 3 vezes os honorários totais para suprir esses erros em obra.

O BIM COMO RESPOSTA A ESTAS NOVAS TENDÊNCIAS
Este pacote legislativo tenderá, se aplicado com rigor, a alterar profundamente o panorama dos projectos em Portugal.
Em primeiro lugar, porque responsabiliza a sério os projectistas, com especial ênfase no coordenador da equipe, o arquitecto. Tanto para as obras públicas, com multas até 3 vezes os honorários totais, como para obras particulares, o arquitecto passa a ser responsável pelos erros e omissões de projecto que originem derrapagens em obra e erros que atrasem ou inviabilizem as obras particulares.
Para além de se subir assim e muito a exigência de rigor de projectos, reforça-se substancialmente o papel de coordenador de projecto e respectivas responsabilidades. Passa a competir ao arquitecto, como coordenador da equipa projectista, a compatibilização das variadíssimas especialidades.
Os tristemente comuns casos como o atravessamento de vigas por condutas de AVAC serão suportados, em obra, também pelo arquitecto.
As consequências serão variadas. Logo à partida, fecha-se o campo de acção dos pequenos gabinetes. Para obras com alguma dimensão, o risco associado inviabiliza que esses gabinetes venham a concorrer com preços competitivos. Qualquer erro de média dimensão fará falir um atelier de 2 ou 3 arquitectos, que dependem inteiramente de consultores externos para executarem as especialidades.
Os gabinetes maiores terão vários caminhos possíveis, em alternativa ou acumulação:
- Especializarem-se em tipos específicos de obra (por exemplo um atelier que só faz piscinas).
- Integrarem nas suas equipas as especialidades. Obriga a um crescimento substancial da estrutura.
- Alterarem os seus procedimentos, de modo a terem um maior controlo sobre o output dos projectos de arquitectura e várias especialidades.

É neste último campo que o BIM poderá ter um papel predominante.
As experiências já realizadas, em Portugal como um pouco por todo o Mundo, apontam para que a metodologia BIM, quando aplicada com o devido cuidado, minimiza o risco de erros, omissões e incompatibilidade entre projectos.
O esforço para a conversão dos ateliers será sem dúvida grande. Há que contrariar práticas enraizadas, preconceitos, inércia e falta de conhecimento.
Há que formar uma nova geração de arquitectos que utilize a ferramenta informática não como um acessório mas como parte integrante do processo de design.
Há que valorizar a qualidade, o rigor e o profissionalismo em deterimento do compadrio, da cunha e do favor que impera no mundo da construção civil e da obra pública.
As recompensas são também grandes. O mercado está a mudar, e quem souber aproveitar as oportunidades que são geradas por esta mudança terá concerteza muito e bom trabalho nos anos que se avizinham.

1 comentário:

bmbento disse...

Muito bom!!!

É pena não haver revistas de arquitectura que tenham coragem de publicarem artigos como este.